Resenhas e Artigos

O Brasil e a crise do Sudeste Asiático

Texto publicado no jornal "O ESTADO DE SÃO PAULO" de 25-01-98, pp. B6.

 

  • AFFONSO CELSO PASTORE
  • O economista Affonso Celso Pastore é considerado um dos mais brilhantes de sua geração. Sempre atento aos fatos e em dia com relação à análise da conjuntura, em julho do ano passado já defendia a necessidade de movimentos mais ágeis por parte do governo em favor das reformas, que considerava necessárias para evitar, na sua visão, um possível ataque especulativo à moeda no futuro. Paulistano, 59 anos de idade, ele foi aluno do deputado e ex-ministro Antônio Delfim Neto na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, da qual já foi diretor. Sua tese, Observações sobre a Política Monetária no Programa Brasileiro de Estabilização, foi aprovada com louvor por uma banca da qual participavam Mário Henrique Simonsen e o próprio Delfim. Pastore ocupou cargos de destaque na Secretaria da Fazenda de São Paulo, no Ministério da Fazenda, no Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais. De setembro de 1983 a março de 1985, foi presidente do Banco Central, cargo que marcou sua carreira. Neste artigo ao Estado, Pastore faz uma minuciosa avaliação da crise asiática e dos reflexos sobre o Brasil.

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    A crise do Sudeste Asiático afeta a economia brasileira por três canais interligados: o da valorização adicional do câmbio real, medido com relação à cesta de moedas; o da queda das relações de troca, provocado pela redução sobretudo dos preços das commodities no mercado internacional; e o do encolhimento dos fluxos de capitais para financiar países emergentes. Os três têm importância, mas o encolhimento dos fluxos de capitais é o que produz os efeitos dominantes. (1)

    A valorização adicional do real com relação à cesta de moedas não é grande. O Brasil transaciona com o Sudeste Asiático apenas 15%, aproximadamente, de suas exportações e importações, mas China e Hong Kong não desvalorizaram, e o Japão, que representa a metade daquelas transações, desvalorizou relativamente menos com relação ao dólar. Por isso, a forte desvalorização de algumas moedas do Sudeste Asiático não produziu uma apreciação adicional de grande magnitude, mas interrompeu a correção gradual do câmbio real que vinha sendo provocada pelo Banco Central. Desde setembro de 1995, a taxa de correção do câmbio nominal foi prefixada em um nível anualizado em torno de 7,5%, e as taxas de juros permaneceram suficientemente elevadas para conter a demanda interna, reduzindo as taxas de inflação para aproximadamente 4,5% ao ano em 1997. A combinação dessas taxas com uma inflação entre 2% e 3% ao ano nos Estados Unidos conduz a uma desvalorização real com relação ao dólar entre 5% e 6% ao ano; depois da crise do Sudeste Asiático, conduz a uma desvalorização menor com 1relação à cesta de moedas. O longo período necessário para cobrir a sobrevalorização acumulada nos primeiros meses do Plano Real ficou ainda mais longo.

    A queda das relações de troca produz efeitos maiores em algumas economias, como a chilena, que exporta proporcionalmente mais produtos primários e transaciona proporcionalmente mais, com o Sudeste Asiático, mas também afeta o Brasil. Nos últimos dois anos o Chile havia valorizado o peso em torno de 8,5%, mas devido à queda de suas relações de troca foi obrigado a permitir alguma desvalorização, ao lado da elevação moderada das taxas de juros. Embora relativamente menos afetado, o Brasil não poderá contar, em 1998, com a mesma contribuição das exportações de produtos primários, que foram fundamentais para permitir um crescimento de 11% das exportações totais, em 1997. Os preços do café e da soja praticamente dobraram, em 1997, provocando um salto nas exportações de produtos primários, que foram mais importantes do que as exportações de manufaturados para determinar o crescimento das exportações globais. Do lado positivo contaremos com a redução dos preços do petróleo. Depois da crise do Sudeste Asiático, no entanto, pioraram as perspectivas das exportações de carne de frango, de açúcar, de papel e de aços, entre outros, o que faz com que os ganhos nos saldos comerciais tenham de ser provenientes da elevação das outras exportações, fundamentalmente os manufaturados e de queda nas importações.

    O encolhimento dos fluxos de capitais para os países emergentes produz duas consequências. Primeiro, os déficits em contas correntes têm de se reduzir para caber na nova dimensão dos fluxos de financiamento. Segundo, como as ondas de choque provenientes da Ásia persistirão por um longo período depois da crise de outubro de 1997, o nível de reservas deve ser preservado para evitar um convite a ataques especulativos, o que implica que as taxas de juros domésticas têm de se manter altas o suficiente para cobrir o crescimento do risco-país.

    0 encolhimento dos déficits em contas correntes poderia ser provocado de várias formas. O Chile optou por permitir alguma desvalorização do peso, mas tinha maior liberdade de fazê-lo porque o grau de absorção (os gastos totais domésticos em consumo, investimentos e do governo) é baixo, dado que a sua política fiscal é contracionista. Isto lhe permitiu desvalorizar moderadamente sem lançar mão de uma grande contração monetária. A elevação de sua taxa de juros foi muito pequena. O Brasil ainda não adquiriu o poder de contrair a absorção pela política fiscal e decidiu-se por preservar o regime cambial, que se tornou a estaca à qual se amarra a reputação do governo na manutenção de seu objetivo de estabilizar os preços. Eliminados estes dois caminhos, somente sobrou a elevação da taxa de juros, que tem a dupla finalidade de reduzir a absorção, e com isso os déficits nas contas correntes, e defender a posição das reservas internacionais.

    Para analisar as perspectivas da economia brasileira daqui para a frente, precisamos modelar a conduta das autoridades. Elas têm dois objetivos: a "estabilidade de preços", que se traduz numa meta de uma inflação semelhante à internacional , como 2% ou 3%,ao ano, por exemplo, e o "pleno emprego".Em tese os dois objetivos são atingidos operando três instrumentos: a oferta de moeda, o déficit público e a taxa cambial, que são acionados sempre que as taxas de inflação e o nível de emprego atual divirjam dos níveis desejados. Pequenos desvios na taxa de inflação e/ou no nível de desemprego, relativamente aos objetivos, produzem pequenas reações, e grandes desvios produzem grandes reações do governo. Até aqui, os objetivos de qualquer governo caberiam nesta descrição bastante geral. Ela serviria tanto para o governo de Perón, quanto para o de Menem, na Argentina. Uma (mas não a única) das diferenças entre os governos mais populistas e os não populistas, repousa nos pesos atribuídos a cada um desses dois objetivos. Os populistas atribuem um peso praticamente nulo à estabilidade de preços procurando o crescimento econômico a qualquer custo. É claro que não podemos distinguir populistas de não populistas olhando somente para esses pesos, e nem quero insinuar que quem se preocupa com o crescimento econômico seja um populista. Mas um populista não hesitaria em reduzir as taxas de juros artificialmente, para produzir uma ilusão momentânea de crescimento e ganhar as eleições, ainda que provocasse um ataque especulativo e uma grande desvalorização. Embora existam argumentos respeitáveis de que provavelmente o governo brasileiro atribui ao crescimento econômico uma importância menor do que a atribuída pela sociedade, ele certamente interpreta melhor do que os políticos a percepção da sociedade sobre os custos da inflação. Não quero me enredar em uma discussão normativa sobre quais deveriam ser os pesos atribuídos aos seus dois objetivos, e restrinjo-me à discussão positiva sobre as consequências da atual política econômica. Certo ou errado, o governo brasileiro está disposto a sacrificar o crescimento para manter a inflação próxima de zero, e isso condiciona a sua reação à crise do Sudeste Asiático.

    Mas há um terceiro elemento considerado na sua "função de objetivos'. O governo investiu na reputação mantendo o atual regime cambial e atribui um custo à perda de reputação pelo seu abandono. Nas suas decisões de política econômica ele penaliza um crescimento da inflação acima da meta desejada mais do que ele penaliza a queda do emprego abaixo o nível pleno emprego, mas penaliza também uma desvalorização cambial, porque perde reputação ao alterar esse regime.

    A partir de outubro, a economia brasileira passou a ser bombardeada por ondas de choques provenientes do Sudeste Asiático A frequência e a intensidade dessas ondas é aleatória, porque elas envolvem erros de previsão. Elas podem crescer de intensidade, se ocorrerem dúvidas quanto à manutenção da paridade do yuan ou do dólar de Hong Kong, ou quanto aos efeitos das crises bancárias coreana e japonesa, ou reduzir a freqüência e a intensidade se os esforços do FMI e do governo americano tiverem sucesso em acelerar o ajustamento na região. Mas, em quaisquer circunstâncias, se essas ondas de choque não obrigarem o Brasil a alterar a suas políticas cambial e monetária, a taxa de inflação a curto prazo não se modificará. Ou seja, a defesa contra os efeitos dessas ondas de choque afetará apenas o nível de emprego, na medida em que a taxa doméstica de juros tiver de se manter alta para defender as reservas, e para encolher as contas correntes.

    Para não perder a reputação o governo não desvaloriza, mas eleva as taxas de juros, o que produz uma recessão. Como o peso atribuído ao pleno emprego é menor do que o atribuído à inflação, e como a perda de reputação tem um custo, ele está disposto a suportar as conseqüências recessivas da elevação da taxa de juros. Ocorre que o nível da taxa de juros adotado, dadas as condições atualmente prevalecentes no Sudeste Asiático, não é sustentável. Temporariamente, o governo contornou esse problema com o pacote fiscal de emergência, mas apesar disso tem de reduzir as taxas de juros o mais rapidamente possível. A velocidade dessa queda, no entanto, não é determinada pelo desejo de estimular a economia, nem pelo objetivo de aliviar as suas conseqüências sobre o déficit público, mas sim pela velocidade na qual a freqüência e a intensidade das ondas de choque emitidas pelo Sudeste Asiático se reduzam, o que escapa ao controle das autoridades brasileiras.

    Se as condições externas abrirem o espaço para uma queda mais rápida dos juros domésticos, a probabilidade de sucesso da estratégia brasileira se eleva. Mas se isto não ocorrer e se os especuladores levantarem a hipótese de que os custos da recessão produzida pelos juros altos se tornaram maiores do que os custos derivados da perda de reputação pelo abandono do regime cambial, terão razões para atacar o real.

    E, é essa componente de "profecia auto-realizável" que perturba as análises sobre as perspectivas da economia brasileira. Em 1992, a Inglaterra sofreu um ataque especulativo e desvalorizou a libra. Sua decisão, longe de ser irracional, atendeu aos melhores interesses do povo inglês e ocorreu como uma profecia auto-realizada. Suas reservas estavam em equilíbrio, o mesmo acontecendo com sua taxa cambial, mas ela estava em recessão. Os especuladores sabiam que se ela fosse atacada teria que escolher entre a elevação da taxa de juros, aprofundando a recessão para defender a libra, ou a desvalorização. Dada a recessão, as conseqüências inflacionárias da desvalorização seriam muito pequenas e como a defesa da libra impunha a elevação das taxas de juros aprofundaria a recessão. Era mais racional desvalorizar do que elevar os juros, porque a desvalorização traria, em adição, alguma recuperação da atividade econômica.

    George Soros sabia que Margareth Thatcher se opunha à proposta de Nígel Lawson de fixar o câmbio com relação ao marco e preferia a flutuação. Ela era a primeira-minístra e poderia trocar o seu ministro da Fazenda. Soros sabia que, se atacasse a libra, ela seria desvalorizada. Ele a atacou e o ministro foi trocado, realizando-se a profecia. Nem todos os ataques têm sucesso, mas muitos deles ocorrem devido a este componente e não apenas ao fato de que os fundamentos da economia estão desajustados. Mas, quando existem fundamentos desajustados, a probabilidade de um ataque cresce. Por isso os governos que queiram defender a sua reputação, insistindo em um particular regime econômico, têm de investir na qualidade da política econômica. Se a política fiscal brasileira não tem a mesma

    qualidade da política fiscal chilena para sustentar os equilíbrios interno e externo, ela tem de caminhar naquela direção. Caso contrário o Pais ficará exposto às profecias autorealizáveis.

    1. - Os grifos não constam do texto original.